Parte 04 – Luiz Leduc e a Saga na Comissão Rondon
- rota cacerense
- 27 de ago.
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Na continuidade desta série especial, avançamos para um novo capítulo dos relatos de Luiz

Leduc sobre a histórica Comissão Rondon. Depois de explorarmos os primeiros desafios da expedição e os encontros com diferentes povos indígenas, chegamos agora a uma fase em que o cotidiano dos expedicionários ganha ainda mais destaque, revelando não apenas as dificuldades técnicas e logísticas, mas também os momentos de superação e de aprendizado.
Nesta quarta parte, os registros de Leduc nos aproximam das histórias humanas por trás da construção das linhas telegráficas: a disciplina dos soldados, a coragem diante da natureza implacável e a firme orientação do Marechal Rondon, sempre guiada pela filosofia de paz e respeito.
Prepare-se para descobrir novos detalhes dessa jornada, que continua a mostrar como a Comissão não apenas abriu caminhos pelo sertão e pela selva, mas também deixou um legado profundo para Mato Grosso e para o Brasil.
CHEGADA A DIAMANTINO DIA 29/08/1907 (DETERMINAÇÃO DAS COORDENADAS GEOGRÁFICAS DA CIDADE)
A 29 de agosto, o Lyra e eu alcançávamos o Chefe da Expedição na velha cidade de Diamantino, distante de Cuiabá 184 quilômetros, onde permaneceríamos por 4 dias. Todo esse tempo seria empregado nos trabalhos de astronomia, com observações do sol e da lua, para determinação de coordenadas geográficas, pela turma chefiada pelo Major Rondon, tendo como seu auxiliar imediato o segundo tenente João Salustiano Lyra. Esses trabalhos deram a Diamantino os seguintes dados: Latitude Sul, 14° 24' 43". Longitude a Oeste do Rio de Janeiro, 13° 16' 32", com declinação magnética de 1° 11' NE e o azimute verdadeiro de 22° 56' NO.
Ao tempo destas anotações, essa localidade vivia da mineração de pedras preciosas. Todavia, na época colonial, Diamantino conheceu o fausto, quando era um grande centro de garimpagem do ouro, que Portugal nos levou.
Aí também deveríamos alcançar os tropeiros, que partiram com as bruacas vazias, a fim de receber do fornecedor da Comissão, o Sr. Dario de Moura, que nessa localidade possuía grandes armazéns e depósitos, carga para 10 muares
Em Diamantino, começaria nossa marcha de algumas centenas de léguas, primeiramente para o encontro do afamado rio Juruena. Muito se dizia sobre esse rio, mas nenhuma indicação precisa havia nos mapas da época. Nesses mapas antigos, os informes vagos e incertos, às vezes fantásticos, localizavam-no em várias e errôneas latitudes, o que pouco adiantava para quem, como nosso Chefe, tinha sobre os ombros a responsabilidade de um trabalho que dependia essencialmente da exata indicação do rio Juruena.
PARTIDA DE DIAMANTINO, NA 1ª EXEDIÇÃO AO RIO JURUENA, NO DIA 02/09/1907
A comitiva de nossa Seção de Exploração compunha-se de 20 homens, com 19 cargueiros e os nossos inseparáveis cães, em número de 12. Estando tudo pronto, pessoal, tropa, partimos à uma hora da tarde do dia 2 de setembro de 1907.
À saída, foi batida a estaca 0 pelo funcionário Teixeira. O Tenente Lyra, com o passo de sua montada previamente aferida, tomou dianteira, devendo registrar as distâncias com o “passômetro” e também o levantamento expedito, com o auxílio do aneróide. Duas léguas além, começava a subida da serra, para alcançarmos o famoso Chapadão dos Parecis. Eu fôra designado para desempenhar as funções de fiscal da intendência.
O primeiro rio encontrado foi o Santa Ana, afluente do Paraguai. Nosso primeiro pouso foi no lugar denominado Arroz Sem Sal, antigo sítio de uma firma proprietária de seringais. Nesse ponto, já são vistas as primeiras árvores fornecedoras da seringa.
SERRA DOS PARECIS
Três dias depois, encontrávamos a primeira aldeia dos índios Parecis, já semi-civilizados, que conheciam o serviço da extração da preciosa “Hevea Brasiliensis”, serviço ao qual se dedicavam, em pequena escala. Ali, ficamos um dia, pela necessidade de obtermos um guia. Não foi difícil encontramos, pois, com a promessa que fez o Major de dar uma espingarda a quem se apresentasse, o próprio Chefe da Aldeia fez questão de ser o nosso guia. Era o elemento de que necessitávamos, posto que, profundo conhecedor de toda a vastíssima área ocupada por essa tribo de selvagens mansos, fiéis e prestativos, quando tratados como amigos. Esse índio foi preciosa aquisição. Dedicadíssimo companheiro, inteligente, exímio caçador. Atirava com a espingarda de fogo central do Major, com a mestria de um campeão. Quando teve em mãos a arma, ficou encantado, pedindo para experimentá-la imediatamente. Saiu ao campo e, em menos de 20 minutos, voltava, trazendo duas perdizes. Havia conseguido essa proeza sem o auxílio de nosso cão perdigueiro, o que seria impossível a qualquer de nossos homens, por melhor caçador que fosse. Antes de sair à rápida caçada, improvisara um apoio para sua arma, com o galho de um pequeno arvoredo, com as folhas em forma de leque, no centro do qual colocou o cano da espingarda. Em seguida, imitando o pio da perdiz, mostrou-nos como faria. O êxito foi prontamente alcançado, com as duas perdizes caçadas e, o mais importante, tendo apenas queimado dois cartuchos, dos três que lhe dera o Major.
O rancho ou maloca compunha-se de uma trintena de indígenas, de ambos os sexos. À nossa chegada, haviam demonstrado certa apreensão, vendo tão grande número de pessoas invadirem seu terreiro. E com justa razão, pois têm eles sido maltratados não raras vezes por seringueiros que acreditam não ser o índio merecedor de respeito e consideração por parte do civilizado, sendo judiados, logrados em suas pequenas transações, por aqueles que freqüentemente têm negado pagamento por pequenos trabalhos anteriormente ajustados. Felizmente, todos os receios desapareceram, quando o Major, logo ao chegar, fez a distribuição de brindes, desde colares, miçangas, ferramenta de trabalho, até algum mantimento.
À tarde, fomos ao banho. Cinqüenta metros antes de nossa chegada à maloca, havíamos atravessado um pequeno rio, de 15 metros de largura e de pouca profundidade, onde fomos nos banhar. Quando entramos na água, um dos índios da aldeia fez-nos sinais para que nos abaixássemos, apontando para o caminho. Atendemos, embora sem atinarmos com o motivo, que descobrimos sem demora: numa pinguela ali existente, passaram 11 jovens índias, correndo e sem olharem para o nosso lado. Eram todas moças, entre 14 e pouco mais anos, parecendo-nos belos e esbeltos tipos de mulher. Somente nesse instante, veio-me à lembrança de não haver visto na maloca mulher que não estivesse carregando criança. Não me havia ocorrido ser possível existirem ali menores do sexo feminino, como as que acabávamos de ver. Interessante é que aquelas jovens passaram em rápida fuga sobre a pinguela, iam todas adereçadas, pescoço, braço, tornozelo, com os presentes há pouco oferecidos pelo Major. Deduzimos, dessa atitude, com relação à fuga, que, apesar de nossa tentativa de procurar inspirar-lhes inteira confiança, persistia nos índios ainda algum receio de nossas intenções. Cremos nisso, dando-lhes razão. Homens estranhos, chegando em grande grupo à sua aldeia, sem se fazerem anunciar, com tantas virgens em seus abarracamentos sem defesa, trataram de enviá-las para algum aldeamento distante, onde certamente não as poderíamos descobrir. A eles as nossas felicitações, por tão acertado zelo. Até o momento de nossas partida, não vislumbramos qualquer daquelas gentis silvícolas.
A nossa grande festa nacional, o 7 de Setembro, passamos entre esses índios, havendo o Major anunciado que seria a data festejada com o concurso do chefe da aldeia, Locuerê, que, após algum ensaio bem sucedido, hasteou nossa bandeira, ao som de salvas de dinamite, toque de corneta e do Hino Nacional, cantado por todos da comitiva. Não querendo o Major que o silvícola comparecesse a essa cerimônia da mais alta significação, tomando parte destacada, completamente despido, sacrificou uma de suas poucas blusas trazendo as suas insígnias, que mais tarde, nos fins da viagem, lhe faria grande falta. Com essa túnica e mais uma calça das trazidas para brindes, tivemos um oficial “ad hoc”, em nossa singela, mas significativa cerimônia.
A 8 de setembro, depois de separarmos regular quantidade de gêneros alimentícios, que o Major ordenara fosse deixada a esse chefe Pareci, despedíamo-nos, encetando nova marcha, rumo ao nosso principal objetivo, que era a procura do rio Juruena, ainda misterioso para nós. Levávamos, em nossa companhia, o guia Pareci, precioso elemento, ao qual devemos boa parte de nosso êxito nesse primeiro ano de trabalhos no sertão.
Passamos por várias aldeias desses índios, já então bons amigos, encontrando em toda parte sinceros desejos de auxílio, naturalmente sempre recusados pelo Chefe, com seus melhores agradecimentos. Na zona ocupada por esses índios, numa área de muitos quilômetros quadrados, com grande número de aldeias, havia sido espalhada a notícia de nossa penetração pelos chapadões afora. Isso fez com que tivéssemos visitantes dessa tribo constantemente, o que não tinha outro objetivo além de tentativas de aproximação a nós, a exemplo do guia admitido e dos inúmeros e intermináveis pedidos de brindes e mantimentos. A distribuição de nossas provisões de boca, em ritmo descontrolado, poderia, com a continuação, levar-nos a uma situação difícil, nesse imenso deserto, desprovido de qualquer recurso. Nesse sentido, tentei uma ponderação com o nosso Chefe, procurando fazer-lhe ver a inconveniência dessa demasiada liberalidade pois, empenhados que estávamos, em uma viagem sem data certa para o alcance da meta desejada, poderíamos vir a sofrer as conseqüências desse seu desejo, embora mui compreensível, de agradar esses pobres silvícolas, arredios que eram de nossa farta civilização. Ouvindo minhas ponderações sobre o assunto, ao qual eu dava exagerada importância, encarregado que eu estava da intendência, nosso Major, no seu incomensurável otimismo, respondeu-me:
-Temos, em gêneros alimentícios, quantidade mais que suficiente para nossa viagem de ida e volta. Esses índios padecem de sub-nutrição. Vivem da caça, alguma mandioca, de que plantam muito pouco e de milho e é só. Ademais, saiba você que, em semelhante sertão, onde a caça é abundantíssima, com os grandes e sem dúvida piscosos rios que existem para a frente, além das incontáveis espécies de frutas que esses campos fornecem, é totalmente impossível alguém morrer de fome. Portanto, esteja tranqüilo a esse respeito.
Nosso guia, o Amure, já havia dito ao Major algo sobre a existência, não muito distante dessas paragens, de um grande rio e de uma cachoeira com queda d´água de uma altura “de meter medo” e de tão grande rumor, que poucos são os Parecis que têm tido suficiente coragem para chegar em suas proximidades, para vê-la de perto. Tentado por tão interessante informação, o Major logo determinou a visita a tal rio, importante para figurar em seus relatórios. Nessa disposição e, considerando que nossa marcha havia sido, até aquele momento, de proveitoso avanço, não obstante nossa constante preocupação de poupar os animais de sela, iríamos, todavia, arriscar essa marcha, mesmo na incerteza da veracidade daquela informação. Por isso, iríamos, apenas, o Major, o Tenente Lyra, eu e o guia Amure.
À PROCURA DE UMA LINDA CACHOEIRA, NO RIO PAPAGAIO (SAUCRU-INÁ), À QUAL O MAJOR DEU O NOME DE SALTO UTIARITY – 03/10/1907
A 1º de outubro, pela manhã, partimos, ficando o acampamento sob os cuidados do farmacêutico Benedito Canavarros. O Amure nunca tinha visto essa grande cachoeira, “onde a água parece vir do céu”. Mas, com seu extraordinário sentido, que lhe dava a faculdade de saber, por intuição, a distância e o rumo a seguir, em pleno deserto, para chegar a determinado lugar por ele jamais pisado, asseverou ao Major que saberia encontrar a falada queda d´água. Partimos, atravessando o serradão, sem caminhos nem simples trilhos. Caminhamos o dia todo, o Amure sempre à frente, apontando o rumo, às vezes fazendo pequena parada em alguma elevação mais ou menos descampada, como para retificar seu rumo e também ante a possibilidade de lobrigar, a distância, o fio de nuvem característico das grandes quedas d´água. Pode ser visto à grande distância, quando de cima de alguma elevação. A marcha era feita através de trechos de campo, velhas capoeiras, capões de matas altas. Anoitecendo, pousamos em pleno chapadão, sem nada comer, nem tínhamos encontrado água o dia todo. Não era aconselhável comer, pois daria sede e esta constituiria tormento maior do que a fome. Havíamos levado avantajado farnel, mas, predominando a razão, abstivemo-nos de tocá-lo. Nosso receio era de que, se, no dia seguinte, não encontrássemos água, seríamos atormentados por imperioso desejo de beber água. Nosso acampamento, ali formado, era numa chapada, onde um pequeno capão de árvores permitiu-nos armarmos nossas redes. Um pequeno fogo de madeiras secas, aparentemente inútil, foi ateado pelo nosso guia. Quando perguntamos ao Amure sobre a necessidade dessa pequena fogueira, se nenhuma utilidade teria para o momento, respondeu-nos simplesmente: “onça não gosta”.
Amanhecendo o dia, levantamos nosso pequeno acampamento, saindo ao trote de nossas montadas, preocupados em descobrir água. A qualquer momento, poderia aparecer, em alguma pequena depressão, qualquer pequeno manancial, nascente ou, em algum capoeirão, o salvador cipó d´água. Somente pelas 10 horas, ao descermos um morrote, demos com um corixo, que nos satisfez. A água não era das mais límpidas, mas o índio, com seu facão, tratou de aprofundar um pequeno espaço no meio da vegetação e, após alguns momentos de espera, tínhamos água quase limpa e fresca. A fome não era pequena e comemos boa parte de nossa matula, que era feita de carne seca, socada com farinha de mandioca. Excelente matula! Uma hora antes, quando ainda estávamos no chapadão, o índio havia chamado nossa atenção para uma fumaça muito ao longe e que, após uns momentos de observação, também conseguimos ver, dizendo-nos ele: “Lá mora grande água!”. Tivemos uns instantes de grande contentamento, infelizmente de pouca duração, porque, ao observarmos a distância que nos separava desse ponto, provavelmente umas 10 léguas, avistamos, a meio caminho, o começo de uma grande mata, o que nos fez prever grandes dificuldades na aproximação do local. Após longa caminhada e depois de descermos enorme depressão, atravessamos grande extensão, entrecortada de corixos e curtos lamaceiros. Nosso guia, sempre na frente, conservava perfeita noção do rumo a seguir. O Major, que viajava com a sua bússola na mão, vez por outra nos dizia que o Amure nunca se afastava do rumo certo e declarou:
-Esse índio vale por uma bússola e um aneróide! É simplesmente extraordinário! Tem maravilhosa intuição!
Havíamos contado com alguma caça pelo caminho, mas, por incrível que pareça, nem um pio de passarinho ouvimos, nenhuma ave em vôo avistamos. Apesar de sua habilidade de caçador emérito, nada foi visto pelo Amure, nem mesmo mel de abelhas, que não deixava de procurar, por toda a jornada.
Pelas 2 horas da tarde, entramos na mata virgem. O acesso foi dificílimo, por termos de apear e ir puxando nossos animais, cortando cipós, taquaras, grossos galhos caídos, toda sorte de empecilhos. Anoitecia. Forçoso nos foi pensar em pouso, antes de escurecer.
À beira de um pequeno ribeirão, em uma diminuta clareira, paramos, com tempo para preparar nossa pousada. Armamos convenientemente nossas redes e fizemos uma ligeira refeição. Acendemos uma grande fogueira, com madeiras secas, que não faltavam no local. Tudo isso feito, deitar e dormir foi questão de momentos. Nossos animais foram soltos ali mesmo, com os cabrestos de arrasto, para facilitar a sua busca na manhã seguinte. O Amure tomara precauções para alimentar o fogo a noite toda, com fartura de madeiras secas. Quanto ao perigo de aproximação de alguma fera, nossos animais seriam nossa guarda. Em caso de algum perigo, viriam correndo para o nosso lado, onde estava a fogueira. A noite passou, felizmente, sem qualquer incidente. Logo ao amanhecer, o Amure saiu em busca dos animais, deixando-nos, os 3, ainda em nossas redes. Eu, de minha parte, só com um único sono, acordei pela manhã com a voz do índio, que nos dizia estarem os animais alongados. Numa primeira tentativa de busca, dizia nada ter visto. Também dizia não haver encontrado qualquer sinal de caça. Quanto à pesca, como trazia anzol e linha, quando chegássemos ao rio, que devia estar muito perto, haveria chance de termos algum dourado ou mesmo uma piraputanga para o almoço. Todavia, nenhum ruído de cachoeira se ouvia. Estávamos ainda a grande distância do nosso objetivo.
Eram 8 horas, quando, por fim, o Amure chegou, trazendo os animais. Um café bem quente, com algumas colheradas de paçoca, nos predispôs à continuação da marcha. Havíamos trazido pequena chocolateira de folha de flandres, com a qual preparávamos o nosso café ao sistema tropeiro, ainda na brasa da fogueira. Montamos a cavalo, mas pouco tempo depois tivemos de apear, seguindo a pé, devido aos obstáculos que encontrávamos a cada instante, embora depois tornássemos a montar. Assim, apeando e montando, fomos indo, seguindo sempre as diretrizes do índio, até que, por volta do meio dia, quase inesperadamente, ouvimos, a distância, grande ronco surdo, que nos pareceu o ruído da cachoeira. Com a alegria transbordando dos corações, pareceu-nos, em dado momento, poder avançar mais facilmente em meio a tantos entraves de galhos e paus caídos, puxando os animais, apressando-nos a atingir o lugar de onde partia o ensurdecedor barulho, que aumentava rapidamente. Meia hora depois, estávamos diante de maravilhoso espetáculo, jamais visto. Soberba queda d´água, talvez de 100 metros de altura, impossível de calcular de momento, caía em vertical, numa imensa bacia circular, de cerca de 300 metros de diâmetro, em meio a uma nuvem de água pulverizada, que subia a uma altura incalculável. Quedamo-nos, extasiados, diante da sublimidade do espetáculo. Uma avalanche formidável, de inestimável peso, a despencar-se daquela altura, dentro de gigantesca bacia, tendo como escoadouro pequena passagem, de uns 10 metros de largura. Daí, se imaginar a profundidade desse pequeno corredor, assim tão estreito. O rugido desse fenômeno nos impossibilitava de ouvir qualquer outro som. Entendíamos-nos apenas por mímica. Nosso guia estava realmente apavorado. Mostrava verdadeiro medo supersticioso, fazendo-nos continuados sinais para que nos retirássemos dali. Em vista disso, o Major julgou devêssemos apressar nossa saída do lugar, receoso de que o nosso índio fugisse, sem podermos impedí-lo. A essa queda d´água, deu o Major o nome de Salto de Utiarity, por ter visto um pássaro desse nome, que era sagrado para os Parecis, em um dos galhos de uma frondosa árvore, inclinada sobre a margem esquerda do rio. A volta para o Acampamento onde, dias antes, havíamos deixado a tropa, foi efetuada com as mesmas dificuldades. Penosa marcha através da mata, cerradões sujos de espinheiros, madeiras caídas e, agora, com nossa matula acabada, íamos sentir a fome anos atormentar. Nós, civilizados, suportaríamos pacientemente a falta do que comer. Mas o índio passou a se queixar continuadamente. Prometia deixar-nos, assim que chegássemos. Iria embora para sua aldeia, onde, dizia, nunca faltava o que comer. Fazíamos o possível para afastar-lhe da mente tais idéias. Nossa preocupação era sempre no sentido de lhe sermos agradáveis. Deixamos propositalmente maior parte da matula em seu proveito. Culpava-nos, também, pela falta de caça. Dizia que não paramos para que ele pudesse encontrar caça. O indígena é assim. Afinal, sempre se consegue contornar a situação, apaziguando-lhe o mau gênio, oriundo de pura ignorância. Essa noite já teríamos de dormir sem comer. Um pouco de paçoca que restava, dêmo-lo ao Amure, para diminuir-lhe os queixumes. Nossos animais passaram a noite com maneias nas patas, tendo sido encontrados facilmente na manhã seguinte pelo índio.
Partimos. Teríamos o maior interesse em apressar a marcha, pois não dispúnhamos de qualquer cousa para diminuir a fome. Preocupavam-nos as atitudes menos respeitosas do Amure. Zangado, dizia inconveniências, dirigidas ao Major. Tentar caçar na incerteza, não convinha. Não podíamos perder mais tempo. Tínhamos de andar. Se bem o fizéssemos, poderíamos chegar ainda de dia ao acampamento. Perto do meio dia, saímos no campo. A marcha seria mais desembaraçada. O Amure ia na frente. Açoitava o animal e não deixava de resmungar. De repente, susteve a rédea do muar. Soltou uma exclamação e, apontando a distância, disse: “Um veado!”. Olhamos na direção apontada. Impedido pela direção do sol, a princípio nada vi. Já o Major apeava de sua montaria e tirava um cartucho da bolsa, colocando-o em sua espingarda de fogo central. Não precisou mais de alguns segundos, para estar a arma pronta a visar a caça, que tão a propósito se apresentava aos nossos olhares de insopitável cobiça. Havendo ali próximo ligeira depressão no terreno, procuramos esconder os animais e a nós mesmos, enquanto o Major corria abaixado, em direção da caça, para maior êxito, ao visá-la. O veado, que pastava tranqüilamente o tenro capim do campo há pouco queimado, ainda não se havia apercebido da presença do inimigo. O tempo urgia. O Major demorava para encontrar posição propícia. Nós, que ansiávamos por pronta e favorável solução, sentimos ser impossível contar, como os israelitas no deserto, com esse precioso maná, caído do céu. Olhei o índio. Vi-o de braços e boca abertos, a imagem de desânimo estampada no rosto. O Lyra, torcendo o cabo de seu chicotinho, monologava:
-Mas, por que não atira? O veado foge! Já pressentiu o caçador e o Major não atira!
Este parecia teimar em aproximar-se ainda mais. Nossa ansiedade aumentava de segundo a segundo. O veado não havia ainda ”tomado vento” do inimigo que se aproximava, mas devia estar por segundos, por fração de segundo. O sol, dando de frente para o caçador, diminuía-lhe, também, a visibilidade. O Major, compreendendo a situação, procurava, aproximando-se do animal, colocar-se o mais possível entre este e o sol. Nossa impaciência aumentava, com a ansiedade e o medo de perder tão oportuna quão apetitosa e tenra carne de veado novo, que mais estava para escapar do que para o ganharmos, sem que o atirador se resolvesse. Este, ao contrário, aproximando-se demasiado, estava a ponto de tornar impossível o bom êxito do desfecho. O veado, até esse momento, nada havia percebido, mas poderia, a dado momento, notá-lo e tudo estaria perdido. No entanto, isso assim aconteceu. Ou o vento teria denunciado a presença do homem à sua espreita, ou por sua natural intuição, que é a constante e vital proteção contra o mínimo perigo a que estão sujeitos esses indefesos animais em estado selvagem, o fato é que o veado, repentinamente, volveu-se do lado onde se encontrava o Major e, dando enorme salto, virou-se par a fuga. “Perdido!” gritou o Amure. Sua palavra não teve eco, pelo estrondo do tiro partido da espingarda do Major. Toda a carga de um cartucho nº 16 acabava de apanhar a caça em pleno ar! Corremos ao local. O Major já havia enfiado outro cartucho na espingarda, o que não foi necessário. O veado estava morto e bem morto!
Pouco antes de ali chegarmos, havíamos visto, na baixada, um pequeno curso d´água, límpida e cristalina. Lá voltamos. Gravetos e, logo, bastante lenha. Em momentos depois, estávamos saboreando ótimo churrasco, apaziguando, com isso, a fome que tanto nos havia maltratado até aquela hora. O Lyra e eu abstivemo-nos de qualquer comentário. O índio, que parecia não se haver ainda refeito do medo de perder-se tão necessário almoço, nada dizia. Impossível saber qual seriam seus pensamentos, diante da proeza de nosso Chefe. Durante a caminhada, à tarde, eu ainda pensava nisso, vendo nosso índio calado.
À tarde, chegávamos ao acampamento. Estava tudo em ordem. Nosso guia, já nosso precioso Amure, estava novamente de bom humor. Havia esquecido os aborrecimentos passados. Não mais falou em voltar para a sua aldeia. A caçada a que assistíramos o havia sobremodo entusiasmado. Falava na perícia que havia demonstrado nosso Chefe, conseguindo aproximar-se da caça num campo completamente limpo de qualquer obstáculo, sem o leque de folhagem que os índios usam para suas caçadas em geral.
No dia seguinte, estávamos novamente em marcha. Iríamos acampar à margem do rio Burity.
Desse ponto em diante, o Chefe resolveu dar ampla consideração aos conselhos e opiniões do Amure. Não que este tivesse indicações seguras do grande rio Juruena, ponto final dos trabalhos da Seção de Exploração naquele ano, mas, diante dessa maravilhosa intuição de rumo. O Major soube aproveitar a maior parte do que o Amure contava. Histórias ouvidas dos mais velhos de sua tribo, que em épocas remotas viviam em constantes guerras com seus terríveis vizinhos, os Nhambiquaras, nas quais, ora vencedores, ora vencidos, haviam chegado até o grande rio, o Juruena. Provavelmente, o Amure nunca lá estivera, mas sabia-lhe o rumo.
O avanço, depois da travessia do rio Burity, seria moroso. Dificuldades de toda sorte impediam-nos marcha cômoda. Extravio de animais, arribadas de tropeiros em seu encalço, com dias perdidos de buscas, demoras em passagens de rios sem canoa, apenas com o recurso de “pelotas” improvisadas, tudo isso agravado com o encontro, ao atravessar uma extensa mata, de um vasto brejo, o que nos fez perder alguns dias, vencidos com dificuldade, com paciência e sem precipitações.
Também nesse dia, como em outros, fomos surpreendidos por extraordinária quantidade de insetos, que nos rodeavam, numa perseguição atroz. Eram moscas e mais moscas, de todos os tamanhos e feitios, que nos cobriam a roupa e o rosto, de tal maneira que nos impedia de falar, de comer e de abrir os olhos, porque nos entravam pela boca, pelo nariz e até nos olhos, num suplício ininterrupto, desde o amanhecer do dia até a tarde. Toda e qualquer tentativa de defesa era inútil. Passávamos o lenço pelo rosto, num movimento incessante, lançando ao chão grande quantidade de moscas. Até com a mão tirávamos punhados de insetos, retirando a mão de um lado, cobrindo-nos o rosto do outro, num incrível mal-estar, de enervar o indivíduo, por mais calmo que se quisesse aparentar. O Chefe, sentado em algum tronco de árvore, passava constantemente as mãos pelo rosto, em silêncio. O Lyra e eu procurávamos imitá-lo, também em silêncio. O mesmo não acontecia com os demais companheiros. A maioria lamentava-se, maldizendo a momento em que pensaram em penetrar nesse “maldito sertão”. O nosso guia índio, que devia parecer-nos insensível a tão insólita praga, era, no entanto, o que parecia mais sofredor. Coberto de moscas, rolava pelo chão, chorava, dizia frases incompreensíveis para nós. Fazia pequena fogueira com folhas verdes, entrava na água, mergulhava, tudo sempre inútil. Todos desejaríamos sair desse lugar e continuar a viagem para longe. Mas, para onde? Os malditos insetos nos apareciam, minutos depois de estarmos instalados no acampamento. Quando este ainda em preparativos, diziam os companheiros que provavelmente esse dia estaríamos livres. Puro engano. Momentos depois, éramos assediados pelas moscas. Isso, felizmente, não acontecia em todos os pousos. À margem dos rios maiores, como o Juruena, o Juína e outros, não havia a “imundície”, como dizia o pessoal trabalhador.
Assim, pouco a pouco, íamos avançando. Com a demora, porém, nossos gêneros começaram a escassear. Em parte, pelas repetidas dádivas feitas aos Parecis, que nos visitavam em quase todos os acampamentos, o que mais tarde nos colocou em sérias dificuldades. Chegamos ao ponto de nada termos para pôr nas panelas, acabando, ao fim de certo tempo, sem esses utensílio de cozinha. Ficamos, também, sem os muares de tropa e de sela, por falta de alimento adequado. Nos meses de agosto e setembro, em toda parte, como é sabido, os campos são queimados. O grande sertão, habitado apenas pelo silvícola, não foge à regra. Lá, é o índio que se encarrega das queimadas. Ele não possui qualquer tipo de criação, não tendo, portanto, necessidade dessas queimadas periódicas. Mas é que ele, sendo nômade, precisa andar e, para isso, necessita do campo limpo, tanto quanto de matos. Por essa razão, são feitas as queimadas. E é por isso que, em toda parte aonde chegávamos, no nosso avanço pelo sertão, íamos encontrando o capim recém brotado no campo e principalmente nas várzeas. Ficávamos contentes, quando podíamos instalar o acampamento em alguma campina bem verde, parecendo-nos que nossos animais iriam gostar de um bom pasto durante nossa estadia no lugar. Embora os bois comessem por alguns momentos daquele pasto, que nos parecia de primeira qualidade, os muares tiravam bocados aqui e ali, logo deixando, para se alongarem pelo serrado, à procura de folhas de algum arbusto, de raízes ou de escassos fios de capim de qualidade diferente daquele que enjeitaram na queimada. Onde a razão disso? Será que essa atraente gramínea deixava nos animais algum mal-estar ou, apesar de sua aparência de excelente pasto, seria um capim duro, de difícil mastigação? O fato é que víamos, dia a dia, esses animais perdendo as carnes e as forças. Pouco a pouco, não suportavam mais o peso já reduzidíssimo das bruacas, vindo, uns após outros, a cansar com os arreamentos e, depois, sem eles, chegando ao ponto de não poderem dar mais um passo, com as quatro pernas estaqueadas no chão limpo, sem qualquer entrave. Se alguém tentava empurrá-lo, o mísero animal caía, sem força para levantar. Isto, para maior infelicidade, acontecia quase sempre longe d´água. Esse estado de coisas começou alguns dias antes de nossa chegada ao rio Juruena. Com o passar dos dias, já de volta, perdemos um a um, quase todos os muares e bois. Havia, mesmo, uma frase, várias vezes repetida durante o dia: “tira o cabresto!” Era mais um pobre animal perdido. Nas travessias dos rios, também perdemos vários. O animal era puxado por um camarada que entrava n´água e, nadando, ia procurando arrastá-lo para outra margem, enquanto dois outros iam tentando empurrá-lo. Essa tentativa era inútil, pois, chegando ao meio, víamos, com pena, afundar o coitado, impossibilitados os homens de qualquer medida de salvamento, em virtude de seu enorme peso.
Nos primeiros dias do mês de outubro de 1907, começamos a encontrar os primeiros sinais da presença do índio Nhambiquara, o indígena até então sem qualquer contacto com o civilizado. Pequenos ranchos de caçadores em suas excursões, jiraus para moqueio de carne de caça, pequenos balaios jogados, já imprestáveis.Todos esses objetos foram minuciosamente examinados pelo nosso Amure, principalmente o tecido de cipós e taquara. Tinha ele observações que externava, como que aprovando e desaprovando:
-Esse boa, boa mêmo! Esse não, Parecis fazê meior!
A marcha continuava. O Chefe, após vários dias, achou de bom alvitre mudar o rumo, de 10 graus, para 80 graus. Não estaríamos indo em direção paralela ao rio procurado? Todos os dias, buscando uma árvore alta, o Major subia em seus últimos galhos, perscrutando o horizonte, para uma orientação segura, a cada vez anunciando nossa rápida aproximação do Juruena. Seria para o dia seguinte. Aquele dia seguinte, porém e outros, passavam e continuávamos a palmilhar o chapadão. Homens e tropa enfraquecendo cada vez mais. Nós, pela falta quase completa de mantimentos. Na verdade, restava-nos mui pequena quantidade de cada alimento. De banha, açúcar e sal, há muito estávamos privados. Lyra e eu, naturalmente, não nos queixávamos. Ao contrário, lembro-me que ele adotara dizer aos que se maldiziam de “tantos sofrimentos”, que havia descoberto um sistema de profilaxia, tão logo voltasse à convivência com a família, excelente meio de evitar a série de enfermidades oriundas do sistema culinário da civilização. Entre o pessoal tropeiro, a reclamação era grande. As baixas de doentes começaram a preocupar o Chefe. Causavam essas baixas a falta de sal, em primeiro lugar e, sem seguida, a de gêneros, suficientes à alimentação de todos.
O Juruena ainda não apresentava qualquer sinal de proximidade. O Major, sempre que descia de uma árvore, anunciava ter visto à frente grande depressão de terreno, o que significava a existência de rio ao fundo. Amanhã ou depois, lá chegaremos, dizia, ao descer do alto observatório. Eram outros dias que se passavam, sem qualquer acentuado sinal do grande rio. O murmúrio entre o pessoal era contínuo.
Em conversa com Lyra, eu dizia encontrar muita semelhança entre essa nossa marcha e o que relata a História, sobre o descobrimento da América, quando o almirante, ansioso por ouvir do grumete, instalado no alto do mastro da vigia, o grito de “Terra à vista!”, acalmava os impacientes, com a promessa de estar muito próxima a vista de um novo continente.
A 18 de outubro, tendo o Major subido ao alto de uma enorme sucupira, gritou-nos:
-Lá está o Juruena!
Essa exclamação, antes tantas vezes ouvida, não despertou maior interesse entre o pessoal que a ouviu. Foi somente ao descer que, explicando melhor, disse:
-Não é mais possível qualquer engano! Um vale profundo, da direção Sudoeste para o Norte, indica claramente a existência de um rio e, à direita, vê-se distintamente ligeira fumaça, indicadora de uma queda d´água. Continuando a marcha, pouco depois, outros indícios davam maior crédito às asseverações do Chefe. Era o terreno em pronunciado declive e, mais adiante, demos com um largo caminho, quase uma estrada, com numerosos rastos de pés humanos, distinguindo-se perfeitamente pés de mulheres e de crianças, dando-nos a certeza de estarmos muito próximos de aldeias, portanto, quase às margens de um rio.
A tarde avançava. Não devíamos continuar seguindo o largo caminho encontrado. Era necessário pensar como e onde estabeleceríamos nosso acampamento, para estudarmos a situação. Assim, deixamos o caminho encontrado, ao fim do qual teríamos de chegar a uma aldeia de índios completamente desconhecidos, atitude essa que a prudência condenava. Por isso, deixando o rumo certo de alguma aldeia, seguimos para a direita. Logo, saímos no campo e avistamos, à certa distância, um grupo de buritis, sinal da existência de manancial d´água. Para lá nos dirigimos, encontrando, junto a essas palmeiras, bom e espaçoso campo para instalar nosso abarracamento, fartura d´água, extensa várzea com tapete de verdura, infelizmente enganoso, como os demais pastos já anteriormente encontrados, desde as recentes queimadas da nova estação. Esse capim, falso pasto, alimento pernicioso, tóxico talvez, que eliminou toda a nossa tropa, o que seria? Capim de folha larga, macio ao tato, de esplêndida coloração verde, por que matava o gado? O pessoal tropeiro logo o denominou de “capim matador”, ou “capim traiçoeiro”. Não possuíamos elementos para um estudo sobre a elucidação desse fato, tão danoso quão prejudicial. No terceiro ano de nossos trabalhos no sertão, por duas vezes, encontrei, isolados no campo, nossos muares, por nós irremediavelmente abandonados na viagem, que haviam conseguido sobreviver. Aparentavam boa saúde, nem magros, nem gordos. Apanhados novamente para sela, prestaram-se de boa vontade a uma trotada, mas, depois de uma légua de caminhada, mostraram o mesmo enfraquecimento da época em que foram deixados no caminho. E, mais adiante, foi necessário abandoná-los junto a uma aguada, por terem diminuído o passo, até completa parada. Já nessa época, os pastos de capim novo, de modo geral, não indispunham nossas tropas. Por que motivo?
Armado nosso acampamento nas proximidades do Juruena, no dia seguinte, muito cedo, o Major, conforme resolução da véspera, em que havia determinado que um pequeno grupo iria fazer a primeira visita a esse rio, ordenou a partida, seguindo 7 companheiros ao lado do Chefe. Ficaram os demais, quase todos doentes ou em convalescença, na companhia do prático em farmácia, Benedito Canavarros. Era apenas para uma pequena visita, devendo estarmos de volta antes do meio dia.
Partimos. Logo adiante, demos com um pequeno trilho que, em forte declive, indicava dirigir-se para a beira d´água. Esse trilho cortava baixa capoeira, mostrando ter sido uma roça da tribo dos Nhambiquaras, existente nas proximidades. Às 8 horas, continuando pelo trilho, que seguia a direção Norte, após brusca inclinação, chegamos a uma bela e vasta praia, de um majestoso rio. Era o Juruena. No primeiro momento, ficamos atônitos, para logo, empolgados com a beleza do quadro que se oferecia a nossos olhos, estarmos possuídos de enorme entusiasmo, contentamento e ruidosa alegria. Somente 3 armas de fogo levavam os 8 homens que nesse dia ali aportaram. O Major, com sua arma de dois canos, de fogo central, o Tenente Lyra e o autor destas linhas, cada qual com seu revólver colt. Com essas armas, cada um de nós deu uma salva de 3 tiros, acompanhadas de vivas à República, ao Brasil, ao Governo e ao nosso intrépido Chefe. Tomamos banho no já, para nós, célebre Juruena. Todavia, não deveríamos esquecer a prudência que o caso recomendava, em virtude da certeza da proximidade dos índios Nhambiquaras, tribo ainda completamente desconhecida e de cuja índole e intenções a nosso respeito, tudo ignorávamos. Os intrusos que haviam, sem prévia licença, invadido seus domínios, certo cuidado deviam ter. O soldado corneteiro, que nos acompanhava, tendo sido acometido de ligeiro acesso de febre, logo após termos saído do acampamento, ficaria de sentinela, com uma das armas, pela possibilidade de alguma surpresa desagradável.
O primeiro grupo deveria voltar logo ao acampamento, para anunciar a boa nova e trazer a todos, porque, naturalmente, esses companheiros estariam ansiosos para ver, por sua vez, o famoso rio, que já algum trabalho nos dera. O Major falava em ficarmos alguns dias nessa bela praia, gozando pequenas férias. Isso, bem entendido, se o Amure se responsabilizasse por suficiente caça e pesca. Como eu vinha conservando uma pequena lata com açúcar e um punhado de mate, teríamos, como extraordinário, uma quase sobremesa.
Na avançada desse dia, até as margens do Juruena, estávamos apenas 8: o Major, o Tenente Lyra, eu, Pedro Craveiro, um mimoseano tropeiro, o corneteiro da expedição, outro mimoseano e João de Deus.
O resto dos componentes da Seção de Exploração havia ficado no acampamento da várzea, para descanso e tratamento dos doentes.
Quatro léguas de ida e volta foi, nesse dia, nossa marcha a pé. Os companheiros receberam a notícia, com enorme entusiasmo. Alguns doentes declaravam-se fortes para a marcha, podendo seguir imediatamente, curiosos que estavam de ver o rio, que somente 8 haviam conhecido.
Mas, como diz o provérbio, “o homem põe e Deus dispõe”. Esses companheiros não poderiam dizer, nesse ano, terem visto o Juruena. Nossa volta ao acampamento havia sido festiva, empolgados, como estávamos, num verdadeiro entusiasmo. O Major ia caçando um ou outro passarinho, mais pelo prazer de dar salvas e também pensando em melhorar o rancho, em regozijo do grande dia. Íamos em franca e ruidosa alegria, completamente despreocupados da possível vizinhança do gentio que, certamente, embora invisível para nós, devia estar acompanhando todos os nossos movimentos, vendo-nos e ouvindo-nos. Em pouco, atravessamos seus caminhos e, em um deles, o mais percorrido, vimos vestígios recentes, de poucos momentos antes, da passagem de grupos, seguidos de rastos de pés de mulheres e crianças e, o que nos causou surpresa, acompanhava esse grupo um cachorro, fato que nos intrigou, pois, como era por nós sabido, o índio não possui cão. Esse rasto seria de nosso cachorro, o “mestre Africano” que, na véspera, o cozinheiro dizia estar faltando na matilha. Isso não fôra tido como de maior interesse, por sabermos que nossos cães costumavam caçar por conta própria, em busca de alimento. Agora, diante daquele rasto, ficamos convencidos de que os Nhambiquaras nos haviam furtado o Africano. Mas como? Não era crível que esse cachorro se deixasse apanhar pelo selvagem! Chegando ao acampamento, verificamos o fato. Curioso seria saber qual a astúcia empregada para esse fim pelos índios.
Estávamos com o bivaque instalado à margem esquerda da cabeceira do rio Jaty, numa antiga tapera de Nhambiquaras. Depois do almoço, dirigi-me à barraca do Chefe, para troca de opiniões sobre o êxito dessa primeira etapa do serviço de exploração, feito até aí com pleno êxito, sem qualquer embaraço de maior monta.
Com mais 2 dias, poderíamos estar voltando para a base de Cáceres, onde, no momento, estava sendo construído o ramal para a cidade de Mato Grosso, antiga capital do Estado, estando, talvez, próxima a sua conclusão. Restavam, para o ano de 1907, apenas os preparativos para a inauguração da estação telegráfica daquela cidade e os trabalhos de gabinete.
Na barraca, o Major me repetiu o desejo de permanecer alguns dias nas margens do Juruena, onde pretendia efetuar alguns trabalhos de astronomia e, possivelmente, explorações desse rio e também o desejo de que visitássemos as aldeias, para estudarmos os hábitos e costumes daqueles índios, com a possibilidade, talvez, de encontrarmos, entre os mesmos, mantimentos em quantidade suficiente às nossas necessidades. Queria tentar aprender algum vocabulário de seu idioma. Ainda possuíamos boa cópia de instrumentos de lavoura. Deixaríamos tudo nessas aldeias, inclusive miçangas, panos etc, que nos restavam das distribuições anteriores.
Após alguns momentos dessa conversação e do desenrolar de planos para o futuro, passamos a prestar atenção ao pio de urus, que nos pareceu provir dos arvoredos do cerrado. À pequena distância, parecia tratar-se de um grande bando desses pássaros. Uma boa caçada seria de proveito para nossa cozinha, tão necessitada de algo reconfortante para nós e principalmente para nossos doentes. O Major, tomando sua espingarda, convidou-me a ir tentar alguns tiros. Meia dúzia de urus reforçaria bem o jantar daquele dia. Saímos em direção à algazarra dos pássaros. O Major levava 10 cartuchos, dizendo que o bando devia ser grande e que, se essas aves não fossem muito ariscas, pensava em aproveitar todos os tiros.
Conversando, caminhávamos, sem prestar muita atenção aos minutos que passavam. Distraídos, caminhávamos sempre. Em dado momento, o Major, virando-se para mim, observou:
-Você não acha, longe como estamos do acampamento, que estamos cometendo uma imprudência? Os urus que ouvíamos piar quando estávamos na barraca, continuam sendo ouvidos à mesma distância. Que quer isso dizer?.
Ao que respondi:
-Serão bípedes maiores, Major?.
-É isso mesmo! Retrocedamos, enquanto é tempo!
Nessa volta para o acampamento, verificamos termos andado, na ida, bem mais de um quilômetro, completamente distraídos com o bando desses “pássaros”, à nossa frente, mantendo sempre a mesma distância de nós. Chegados à barraca, o Chefe apressou-se a contar o caso aos companheiros, começando a tomar certas providências a respeito de nossa segurança, cousa que até aí não havia julgado necessária.
-Ninguém deverá afastar-se do acampamento, a mais de 50 metros!
Foi a ordem dada pelo Major. À noite, teríamos sentinelas.
Nossos doentes, ao amanhecer do dia 21, ainda não se encontravam em estado de efetuarem uma caminhada, mesmo pequena, como a que teríamos que fazer naquele dia, até o Juruena. Além disso, o Chefe não deixara de se preocupar com nossa falsa caçada de urus. Seria melhor, por isso e por motivo de nossa segurança, adiarmos essa última etapa, para mais um dia. Havia, também, ordenado ao pessoal são, que fizesse, com todo o cuidado, em grupos de três, levando cada grupo pelo menos uma winchester, das poucas que possuíamos, uma cuidadosa exploração em volta do acampamento.
A cabeceira, na qual se achava apoiado o bivaque, não era, infelizmente, uma situação suficientemente estratégica, pois, tratando-se de uma cabeceira, que quer dizer o começo de um caudal d´água, era, como acontece, um semi-banhado, com cerca de 50 metros de largura, com muita água entre o capim. A vegetação abundante formava um aglomerado de arvoredos, propício a esconderijos para ataques fortuitos, situação essa que se deve evitar, sob pena de uma desastrosa surpresa.
Ao amanhecer do dia 22 de outubro, a animação reinava entre o pessoal da Expedição. Quase todos os doentes, mais ou menos restabelecidos, estavam ansiosos para ver a novidade. A promessa de três dias passados, à beira d´água, de descansar, pescar, contribuiu muito para o restabelecimento quase total dos doentes. Falou-se até em sobremesa. É que o farmacêutico anunciou que, na bruaca da farmácia, ainda teria uma lata de açúcar, uns tabletes de chocolates, outros tabletes de sopas americanas, preciosidades que vinham sendo avaramente distribuídas, segundo as maiores necessidades. Tudo isso constaria do programa da festinha a ser realizada à beira do rio, em homenagem ao feliz êxito alcançado nesse primeiro ano de trabalhos da Comissão.
O Major havia dado ordem para que o farmacêutico, com seus doentes ou convalescentes, seguisse logo ao amanhecer, para as margens do Juruena, aproveitando a fresca da manhã. Seriam apenas duas léguas a caminhar, trecho que poderia ser vencido antes que o sol aquecesse demasiadamente o chão. Em seguida, sairia a tropa. O Chefe dispunha-se a seguir uma variante, com pequeno grupo, no intuito de procurar o caminho para as aldeias dos Nhambiquaras, de cuja proximidade não tínhamos dúvida, pelos vestígios encontrados na véspera.
Nhambiquara era, na época, uma tribo de cuja existência só se sabia pelas informações dos mais velhos, entre os Parecis, notícias essas que vinham por tradição e, na época, por vestígios encontrados por estes últimos em suas alongadas pelos chapadões. Nenhum deles, porém, estava habilitado a prestar maiores informações. Nenhum contava ter visto de perto algum índio dessa tribo selvagem, arredia do branco. Também nada sabiam sobre hábitos, idioma, não constando, ainda, haver esse índio tido qualquer contacto com civilizados.
Além do Chefe, iríamos o Tenente Lyra, eu e o mimoseano Domingos, que levava uma winchester, porque o Major não queria esquecer o episódio da caçada de urus. Até esse dia, ainda tínhamos alguns muares de sela. Assim, nosso grupo de 4 homens iria a cavalo, levando no arção da sela todo o restante dos instrumentos de lavoura que havíamos reservado para presentear esses índios ainda desconhecidos, além de muitos pequenos presentes para mulheres e crianças, tais como colares, braceletes, medalhas etc. Era também uma oportunidade para esvaziar as bruacas, já que poucos e fraquíssimos eram os bois cargueiros que nos restavam.
Partimos. Caminhávamos ao passo dos muares, indo um tanto distraídos, embora eu não esquecesse o caso de nossa pseudo caçada. O Lyra havia-me dito, pela manhã, haver acordado ligeiramente indisposto, talvez um problema do estômago. Eu, por minha vez, encontrava-me também indisposto, quase doente, um mal-estar de origem ignorada. Gostaria de poder apear, estender-me no chão, receber no rosto o sutil calor do sol, nessa bela manhã da estação primaveril. O maravilhoso aspecto apresentado pela vegetação nessa época do ano e a calma reinante nesse formoso jardim, que é o cerrado, cheio de grande variedade de flores campestres, infundiam em nosso espírito um desejo fortíssimo de lassidão completa de nós mesmos, o que, aliado ao mal-estar de que então me achava possuído, obrigou-me a penosa atitude em cima da sela, cansado, curvado, bastante enfraquecido pela escassez de alimentação. Desejava poder abreviar essa marcha rumo às aldeias, a fim de descansar na praia onde estivéramos na antevéspera.









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