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Parte 05 – Luiz Leduc e a Saga na Comissão Rondon


O fotógrafo Leduc, Tenente Lyra e o Major Rondon e os demais expedicionários e o índio Ariti  com as  flechas  que  os Nhambiquaras haviam lançado contra Rondon.  -  Expedição de 1907  - Foto Leduc
O fotógrafo Leduc, Tenente Lyra e o Major Rondon e os demais expedicionários e o índio Ariti com as flechas que os Nhambiquaras haviam lançado contra Rondon. - Expedição de 1907 - Foto Leduc

Chegamos à quinta parte desta série especial, em que a voz e os registros de Luiz Leduc continuam a iluminar a trajetória da Comissão Rondon. Depois de acompanharmos o cotidiano dos expedicionários e os encontros com diferentes povos, avançamos agora para relatos ainda mais intensos, que revelam tanto os desafios extremos da selva quanto a determinação inabalável dos homens que nela se aventuraram.

Nesta etapa, os escritos de Leduc mostram o esforço coletivo diante das dificuldades de transporte, das doenças e da escassez de recursos, mas também evidenciam a força da liderança de Rondon, cuja filosofia de respeito e humanidade seguia como guia da expedição.

Prepare-se para mergulhar em mais um capítulo dessa epopeia, onde cada detalhe narrado aproxima o leitor da realidade vivida pela Comissão, e reforça a grandiosidade dessa missão que marcou Mato Grosso e todo o Brasil.

A EMBOSCADA  - 22/10/1907


Teríamos feito uns 400 metros de marcha, quando, de repente, um grito à frente despertou-me dessas meditações doentias. Erguendo-me na sela, vejo, atônito, o Major, em sua montaria, num movimento instintivo de defesa, tirar a espingarda que trazia no ombro pela bandoleira e dar o primeiro tiro, com pontaria a esmo, seguido imediatamente de outro tiro. Volvendo rapidamente os olhos na direção do alvo, vejo, à distância de vinte e poucos metros, um índio, uma espécie de gigante, nu, com uma comprida cabeleira, cara larga, ombros hercúleos, apresentando uma frente com largo peito, na atitude de lançar a flecha, no momento em que, retesado o arco ao máximo, a flechas partia. Tudo isso havia-se passado  ante minha vista, no espaço de dois segundos, o suficiente para guardar na minha retina essa visão raríssima, digna do pincel de um Pedro Américo ou de um Victor Meireles. Várias cabeças percebi, ainda, entre a vegetação, onde a folhagem tremulava, como agitada por forte ventania.

A transformação que se operou em mim foi de um efeito incrível. Saltei de cima do muar, já com meu colt na mão, atirando na direção do selvagem, seguido imediatamente do mimoseano Domingos, que me secundava com sua arma. Aos primeiros tiros, que foram dados a esmo, os demônios bronzeados desapareceram, como por encanto. Avancei uns 100 metros, no cerrado limpo, nada mais vendo, nem sinal algum dos silvícolas, ouvindo apenas o latido de nossos cães que, distantes, continuavam a perseguição. Voltei, chamando pelo Domingos e encontrei no chão um maço de flechas, abandonado pelo gentio em sua retirada. Apanhei as flechas no meio de pequenos canudos de taquara, que a princípio ia deixando no chão. Mas, quando esses canudos me chamaram a atenção, intrigado que fiquei com a sua presença ali, apanhei um deles e verifiquei que no maço de flechas havia algumas que traziam na extremidade um canudo igual aos primeiros achados. Percebi logo do que se tratava. As flechas envenenadas tinham a ponta no interior do canudo, para proteção. Levei tudo para junto dos companheiros, que ficaram no lugar do ataque. Também ali já se encontravam os demais, que havíamos deixado no acampamento. Ouviram os tiros e acorreram para ver o que se passava. Eram os mais variados os comentários sobre o fato. O Major, recebendo o maço de flechas que eu trazia, verificou o que eu já havia visto, inteirando-se da utilidade dos canudos. Retirada essa capa protetora da ponta da flecha, vímo-la untada de uma substância de cor negra, reluzente, ainda úmida. As flechas de que se serviram os selvagens para seu ataque contra nós eram, de fato, envenenadas, daí a utilidade dos canudos. O Major, por sua vez, explicava como se havia dado o ataque:-Vi passar bem na frente de meus olhos alguma cousa, como se fôra um passarinho. Olhei, distraidamente, que passarinho seria, quando, atônito, vi uma flecha que, a poucos passos à minha direita, enterrada ao solo, ainda vibrava. Com a rapidez do pensamento, conheci o perigo. Virei o rosto para a frente, no mesmo instante em que outra flecha atingia tão próximo de mim, quanto a primeira, derrubando-me o capacete. Instintivamente, arranco a espingarda e, sem fixar pontaria, atiro na direção de onde vinham as flechas, desfechando um segundo na direção de um índio que, retesando o arco, enviava-me outra.Nesse ponto da narração, um companheiro, o Teixeira, exclamou, apavorado:-Major, olha a flecha na bandoleira da espingarda!Incrível! Somente sob a proteção divina, poderia dar-se fato tão extraordinário! Uma flecha havia atingido a bandoleira, penetrando sua ponta finíssima, untada de fresco em líquido semi gorduroso, exatamente num dos orifícios existentes no couro para regular o comprimento da bandoleira, quebrando-se a cerca de 15 centímetros e ficando esse pedaço preso à sola. Incrível! O resto da comprida flecha estava no chão, aos pés do Major.

Nosso Pareci examinava, com a máxima curiosidade, as flechas por mim achadas ao derredor, ao percorrer o local do ataque. À toda inspeção feita nas pontas da flecha, repetia:-Veneno, mêmo! Veneno grande! Pareci tem medo mêmo, coitado de Pareci!No entanto, devia pronunciar essa frase simplesmente pelo hábito de expressão: “Coitado de Pareci, tem medo mêmo!”, pois não o demonstrava, esquadrinhando o terreno, no afã de encontrar maior quantidade das flechas atiradas contra nós pelos Nhambiquaras. Encontrou apenas mais 6. Duas, sabíamos haverem sido atiradas contra o Major, porque a terceira ficara na bandoleira. As demais foram, certamente, atiradas contra o Domingos, que ia à frente e o Lyra. Estando eu em quarto lugar na fila, logo depois do Lyra, nada vi contra mim. Visaram os que caminhavam na frente, notadamente o Major. Por estarem, talvez, desde dias nos acompanhando e nos estudando, teriam chegado a perceber que o Chefe desse grupo era o Major, “o branco que carregava uma espingarda comprida”.A fotografia por mim tirada, momentos depois, no acampamento e que ilustra esta página, assim como a própria bandoleira, encontram-se no Museu do Rio de Janeiro, na seção indígena.


Quanto ao índio, que por três vezes expediu flechas de seu arco contra o Major, deveria ser ou o chefe do grupo, pela sua avantajada estatura, ou o melhor atirador. Foi esse índio que vi, por poucos segundos, quando, ao grito do Major, virei o rosto para a frente – visão pasmosa que, por algum tempo, ficou-me gravada na retina – no instante em que o selvagem, lançando a sua terrível arma, a segunda flecha contra o Major, lhe derrubou o capacete da cabeça. Por esse relato, vê-se que esse índio, certamente encarregado de visar a pessoa do Chefe, foi de grande perícia, pois a primeira flecha atirada teria passado a um centímetro do seu rosto. A segunda tê-lo-ia ferido na cabeça, não fôra o resguardo do capacete e a terceira que, pela simples observação do ocorrido, se conclui que o silvícola, que tencionava feri-lo na cabeça, diante do malogro das duas primeiras tentativas, não querendo perder uma terceira, teria visado o corpo, o peito, crente da impossibilidade de errar, por ser um alvo mais fácil. No entanto, pela terceira vez, o Major saiu incólume, esta última pela poderosa proteção divina. Nosso Amure, encantado com o achado das flechas, empenhou-se o quanto pôde para que lhe fosse permitido levá-las para sua aldeia. Respondeu-lhe o Major que as 6 por ele encontradas pertenceriam, desde logo, ao acervo da Comissão, para futuros relatórios e para serem enviadas ao Museu Nacional do Rio de Janeiro. Mas, lhe daria algumas, do maço por mim trazidas após o ataque. Poderia dar-lhe umas duas ou três, para levar e mostrar à sua gente na aldeia. O Amure agradeceu, já antegozando o prazer de mostrar aos seus o rico troféu, explicando, como podia, tratar-se de armas tomadas aos terríveis Nhambiquaras, em combate travado conosco em pleno dia e em campo aberto.

Nossos companheiros, indignados com o proceder desses selvagens, que momentos antes eram por nós considerados como amigos, ainda antes de termos contacto com eles, no justo momento em que íamos visitá-los, levando-lhes presentes, queriam reunir-se para uma desforra, propósito de todo errado e a que o nosso Chefe se opôs. Chamando à razão esses companheiros, fez-lhes ver o desacerto desse intento, ordenando que cessassem as exclamações e dizendo-lhes ser pura tolice e grande erro pensar em tal cousa, que nenhum benefício nos traria. Acrescentou que, caso se fizesse necessária uma revanche, com que armas contaríamos? O bom senso indicaria semelhante alvitre?

-Nada de assim pensar! Voltaremos daqui deste ponto! Não é um triunfo para esses índios e, se o é, digo que honroso para eles, porque pretenderam defender o território que ocupam e que têm o direito e o dever de defender, contra a invasão por intrusos, embora tivessem de combater apenas armados de arcos e flechas, contra inimigos bem armados, comparativamente, com espingardas cujos efeitos por certo bem conhecem.

Eu bem via nesse reduzido grupo de homens, sem qualquer pensamento justo, o produto do falso raciocínio, razão por que o Major também não os levou muito a sério.

Em conclusão, nenhum de nós sofreu qualquer ferimento, por grande felicidade. Se tivesse sofrido, dada nossa absoluta falta de recursos, teria sido um verdadeiro desastre.

A retirada desse local fez-se na melhor ordem, indo a tropa na frente, protegida por dois homens armados com suas winchesters, seguida pelos ainda doentes e, por último, os homens válidos, que fechavam a marcha, na previsão de sermos seguidos pelos índios. Nossa situação era precária. Meia dúzia de nossos homens ainda se encontravam doentes e fracos. Logo após havermos iniciado a marcha, um deles, que ia montado, pela impossibilidade de caminhar, caiu do animal, com forte acesso de febre. Fomos obrigados a esperar que seu estado melhorasse, para podermos continuar a marcha. Somente nessa ocasião foi que me voltou à lembrança o estado febril em que me encontrava na manhã, antes do ataque dos índios. Eu, que pensava iria adoecer seriamente, ou já estava bem doente, tudo desapareceu, com o susto, pela instintiva reação diante do perigo, encontrando-me, desde aquele momento, completamente são e perfeitamente bem, forte, como há muito não me sentia. E somente ali, naquele momento, me lembrava da pseudo doença, cortada antes de me invadir completamente o organismo.

Contando ao Lyra o que se passara comigo, disse-me ele que, com efeito, também havia pensado que viesse baixar à enfermaria, havendo, entretanto, desaparecido tudo. Sentia-se pronto a enfrentar os trabalhos da volta ao nosso ponto de partida.

Meia hora gastamos com o nosso doente. Logo que pôde montar de novo, seguimos, com redobrado cuidado, pois a expectativa era de sermos seguidos pelo gentio que, na hipótese mais simpática, iria nos empurrando para a frente, sem intenção de nos molestar, contanto que desocupássemos sua propriedade. Todavia, a suposição de sermos perseguidos e alcançados nos trazia alguma preocupação. Mais adiante, essa suposição ia-se tornando realidade, parecendo-nos, em dado momento, ouvir, ao longe, como que gritos humanos, o que nos obrigou a preparativos de defesa. Verdade é que não os temíamos muito, pois que, prevenidos como estávamos, poderíamos nos defender, com alguma vantagem. Só Deus saberia o que poderíamos fazer para isso! Felizmente, alguns instantes depois, verificamos nada ser, do que imaginávamos. Foram simplesmente gritos de um dos nossos cães, o Africano que, prisioneiro há dias dos índios, acabava de fugir e, ainda aterrorizado, tendo achado o nosso rasto, corria ao nosso encalço. Nosso fiel amigo Africano, havendo conseguido desvencilhar-se de um cipó, do qual ainda trazia um pedaço ao pescoço, nos alcançou, louco de alegria, por estar novamente entre nós. Era de ver como o amoroso animal se dirigia festivo para cada um, no afã de ser acarinhado por todos! Que se teria passado com o fiel companheiro e como teria sido possível o seu aprisionamento? Ainda nos faltava uma cachorra, desaparecida desde alguns dias. Voltaria também? Que pretenderiam os silvícolas fazer com os cães? Pensariam eles servirem-se desses animais para suas caçadas? Teriam eles noção da utilidade do cão para caça, ou pensariam em prepará-los para servirem de alimento? Seriam moqueados para matula, em seus alongamentos em caçadas? A cadela nunca nos alcançou. Teria sido sacrificada? Foi no que acreditamos.

Com o máximo de precauções, passamos essa primeira noite no pouso, no mesmo local de onde partíramos pela manhã, tão bem dispostos, com a esperança de uns dias de descanso, sem maiores preocupações, com a quase certeza de poder ser anunciada a pacificação da nova tribo, sem o emprego de violência e prevendo para breve a instalação de núcleos de agricultores trazidos de fora. Era magnífico ponto para a instalação de uma estação telegráfica, da civilização, em suma.

Tudo perdido! Esse necessário trabalho de pacificação teria de ser novamente tentado no ano seguinte.

No acampamento, rigorosas medidas de cautela foram tomadas. A distribuição de sentinelas, em número de 4, nos pontos Norte, Sul, Leste e Oeste, desde o anoitecer, rendidas de duas em duas horas. Em cada quarto de hora, estas sentinelas fariam, entre si, o chamado regulamentar, gritando a primeira para a segunda: “Sentinela, alerta!”, respondendo a outra: “Sentinela, alerta estou!” A segunda faria o chamado para a terceira, que responderia, fazendo esta o chamado para a última e assim sucessivamente, com pequenos intervalos, até o amanhecer. Essa rigorosa precaução encontrava perfeita justificativa, em virtude dos acontecimentos do dia. O Major, por sua vez, com a sua rede armada ao centro do nosso grupo, também pouco dormia. Em intervalos não maiores de vinte minutos, gritava:

-Não durmam! Os silvícolas estão em volta do acampamento!

Deveríamos responder, mas seus chamados não encontravam eco. A fadiga, provocada pelas peripécias passadas, não permitia afugentar convenientemente o pesado sono. Eu ouvia sempre essa voz, a recomendar maior prudência, mas, meio adormecido, esperava que outra voz respondesse e, diante do silêncio tentador, adormecia. Mas, por precaução, adotara a seguinte tática: armara minha rede, como fazia em noites de chuva: uma corda forte, bem esticada sobre a rede, na altura do amarrilho dos punhos da mesma e, por cima dessa corda, meu grande ponche de borracha estendido. Deitei-me ao comprido, com meu revólver à altura do peito, o cano voltado para o lado do mato, um dedo na trava e outro no gatilho. Assim, dormia. Meu raciocínio era o seguinte: o índio, à noite, ataca a porrete, já que sua flecha não pode ser lançada no escuro. Assim, a primeira pancada alcançaria a corda. Antes da segunda, eu já teria disparado o primeiro tiro a esmo. Se insistissem em atacar-me, era sinal de que vinham em grupo. Por isso, matinha o pente com 7 balas na arma de repetição e só por muita infelicidade não poderia livrar-me deles.

Ao amanhecer, tudo estava bem. Todavia, um tropeiro, que saíra à procura dos animais, havia trazido uma flecha, com a ponta manchada de sangue. O que seria? Várias conjecturas fizemos sobre o fato, mas nenhuma explicação encontramos. A que demonstração se apegariam, para deixar próximo uma flecha com sangue? Sangue de que? Não faltou qualquer dos nossos animais. Não conseguimos resolver o problema. Mais tarde, lembrei-me de que talvez tivessem sacrificado a cachorra roubada antes. Enfim, passou.

Um fato que nos chamou a atenção foi que os nossos cães não latiam, desde dias atrás, assim como na véspera, no momento em que fomos atacados. A matilha não pressentia a aproximação dos silvícolas escondidos no mato. Deduzimos, desse fato, que o enfraquecimento, pela insuficiência alimentar, seria a causa dessa anormalidade. Cansados, enfraquecidos, estropiados, haviam perdido a disposição para seus encargos de guardas, daí a possibilidade da emboscada e do ataque efetuado, aliás, sem êxito por eles e do qual escapáramos com tanta felicidade. Também nessa última noite, no pouso, não fora ouvido qualquer latido. No entanto, os índios, atrevidamente, estiveram em nossa volta. Seria mais um ensinamento, para futuras campanhas.

VOLTANDO DA PRIMEIRA EXPEDIÇÃO AO RIO JURUENA – 23/10/1907

Logo após rápido café, encetamos a marcha em continuação à nossa retirada. Antes da hora do almoço, afrouxaram mais 5 dos nossos cargueiros. Nada mais havia a fazer, senão tirar-lhes as cargas, com cangalhas e demais apetrechos, deixando-os para trás, embora com grande tristeza, pela triste sorte desses míseros animais, sem qualquer possibilidade de prestar-lhes qualquer auxílio, em vista da precariedade física e material em que nós, os humanos, nos encontrávamos. As tentativas para conduzi-los, mesmo a passos vagarosos, até junto à água, não foram desprezadas, mas, infelizmente, o cansaço, doença ou desânimo, havia chegado, como aos anteriores, a ponto de não mudarem um só passo. Aos que caíam, nossos esforços de auxílio eram completamente inúteis. A frase clássica era, então, repetida: “Tira-lhe o cabresto!” O Nhambiquara, que nos seguia, com certeza os sacrificaria. Esses índios, pelo que mais tarde verificamos, comem carne dos burros e repelem a dos bois.

No ano seguinte, quando do ataque dos Nhambiquaras contra a minha tropa na Mata da Canga, os soldados que, dias depois, foram em meu socorro, encontraram os quarenta bois, de que se compunha a tropa, todos mortos a flechadas, porém, deixados no campo, enquanto que dos meus muares de sela, foram encontrados apenas restos, as partes não aproveitáveis para comer. Será a repugnância pelo boi, em virtude do seu tamanho, em relação ao veado e, também, pelo tamanho dos chifres?

Numa tarde, o índio ouviu o pio de uma perdiz, dispondo-se a caçá-la. Quem sabe se esse campo nos ofereceria caça, não direi em abundância, mas o suficiente para sortir nossa despensa por alguns dias? No entanto, nosso Pareci, apesar de também interessado em procurar caça, mesmo em proveito próprio, talvez em virtude de depauperamento, pareceu-nos desencorajado. Ofereceram-lhe uma espingarda para a caça, mas achou preferível sua flecha. Preparou, com os galhos de um arbusto, uma espécie de leque. Prestei atenção nos seus movimentos, para ver como faria. Andando no campo, em diversas direções, ia imitando o pio da perdiz, conseguindo, após alguns instantes, ouvir o piar de uma delas. Dirigindo-se para o lado conveniente, quando já devia estar perto da ave, vi-o colocar a flecha no centro do leque de folhagem e, adiantando-se a pequenos passos, aproximou-se muito de vagar, até encontrar-se a um metro da caça, disparando, como se diria se fosse arma de fogo, à queima roupa. Não errou! Vi-o abaixar-se, apanhando os ovos que encontrou no ninho, comendo alguns, para não perder tempo e colocando os restantes na algibeira. Tomou o caminho de volta ao acampamento, levando a perdiz morta. Não mostrou, entretanto, os ovos trazidos do ninho. A perdiz foi, imediatamente, para a panela, sem qualquer tempero nem gordura. Deveria ser dividida entre as vinte pessoas do acampamento. Era essa a regra seguida. Mesmo o mel, embora raríssimo nessas alturas, quando encontrado, era dividido entre todos. A abelheira de Jatí era a única existente nesse cerrado. Essa abelha faz sua casa sempre no pé de uma árvore, dando pouco mel. Quando encontrada por algum dos componentes do grupo, era trazida ao Chefe, que, pondo o pessoal em linha, de mão estendida, deitava na palma da mão o tanto de uma colher, ou menos, o suficiente para sentir o gosto.

Há, no campo, um veado, de cuja espécie não me recordo o nome, imprestável para alimento, por ter sua carne mau gosto e cheiro quase intolerável. Uma tarde, chegados a uma cabeceira, estando o capim verde e tenro, embora a marcha tivesse sido pequena, convidava ao descanso. Armadas as redes, o Major mandou chamar o guia Amure, para que fosse dar uma volta pelo campo, à procura de alguma caça. Talvez o campo fosse propício à existência de algum animal, que servisse à refeição do dia. O Amure não foi encontrado. Teria ido espontaneamente procurar alguma perdiz. Esperamos. Uma hora depois, um dos tropeiros veio dizer ao Chefe tê-lo visto no cerrado, a cinqüenta metros dali, atrás dos arvoredos, junto a um pequeno fogo, comendo alguma cousa. Imediatamente, o Major quis ver do que se tratava. Convidou-nos, não faltando quem quisesse nos seguir. De fato, atrás de alguns formigueiros, fomos encontrar nosso guia comendo, mui sossegadamente, pedaços de carne, que cortava de uma peça de veado, morto a flecha. O Major, aproximando-se, interpelou o índio sobre o que estava fazendo, sobre esse proceder incorreto, de ter caçado um veado e não o apresentar à cozinha do acampamento, para a refeição de todos os companheiros. O índio não se perturbou com a admoestação. Mui calmamente, esse filósofo das matas, continuando a mastigar seu apetitoso petisco, observou:

-Ocê falou prá Pareci que Pareci tudo porco, comê carne esse veado! Esse veado boa mêmo! Pareci gosta!

Retrocedemos e o Major, dando boas risadas, lembrou-se do fato passado logo no início da viagem, quando esse índio, tendo caçado um veado daquela espécie, fôra por ele reprimido, por comer caça tão nojenta, dizendo que o Pareci é porco. Agora, o índio, lembrando-se disso, matou seu veado muito calado e foi assá-lo distante dos companheiros, para evitar nova reprimenda.

Ao anoitecer, ainda estávamos distantes de nosso antigo pouso no rio Saucru-iná (Papagaio). Todavia, o Chefe pediu ao pessoal mais algum sacrifício, principalmente dos doentes, que, ainda bem, encontravam-se quase todos em fase de convalescença, mas ainda muito fracos, o martírio de caminhar à noite, em uma picada ainda nova, cheia de tocos, atravancada de galhos, de cipós etc, prendendo os pés dos caminhantes, provocando quedas e golpes, justamente agora, quando eram obrigados a marchas cansativas, aumentando seus sofrimentos, quando se tornou completa a escuridão, acrescido de possível seguimento pelo gentio, ou de perdermos algum dos restantes cargueiros.

No pouso, à hora do descanso, um homem da tropa, aproximando-se do lugar onde me encontrava deitado em minha rede, armada entre duas árvores, disse-me:

-Vim papiar com vancê umas hora! O Major fez muito mal em não deixar que fôssemos dar uma lição a esses bugre lá dentro de suas malocas! Aquilo é bicho mau!

Admirado de semelhante opinião, partida desse companheiro, respondi-lhe:

-Você ainda acredita que fosse razoável uma vindita contra os índios? Em primeiro lugar, não havia uma justa razão para que fizéssemos isso. Em seguida, qual a idéia que você tem, de como acabaria nossa ação contra esses índios? Quantos somos, para enfrentar, quem sabe que número considerável de guerreiros, embora em inferioridade, no valor de armamento? Esse bugre, como você diz, tem completo conhecimento do terreno, o que não temos, a astúcia do guerrilheiro e, indubitavelmente, a superioridade numérica em homens. Quantas armas de fogo possuímos? E que quantidade de munição haverá para cada homem? E mais: nossos homens saberiam aproveitar essa diminuta quantidade de balas que cada um traz, em menos de dez minutos de fogo? Você mesmo, para citar alguém, estaria com sua winchester na mão, ao esgotar-se a munição, sem mais qualquer utilidade. E depois, o que faria? Correria, diante do enorme número de bugres que viriam em cima de você, ou que faria? Fugiria, correria para o mato? Responda! Creio bem que se essa loucura tentássemos, seríamos todos sacrificados, até o último homem.

-Mas o senhor foi o primeiro a pular do burro e perseguir os bugre! - disse-me ele.

-Respondi-lhe: -

Mas isso é cousa completamente diferente! Foi um ato de instintiva defesa! Depois, vindo o raciocínio, eu seria incapaz de desejar recomeçar a perseguição.

Retorquiu ele:

-Então é medo! Eu pensava que o senhor fosse um homem de coragem! O Major também atirou contra os bugre!

-Sim, também! Puro instinto de defesa! Agora, veja se ele, a sangue frio, será capaz de puxar o gatilho de uma arma contra os silvícolas. Para uma vingança, é preciso ser assassino, possuir o prazer de matar seu semelhante. Você deve se lembrar da chacina que o seringueiro Pedro Vigno tentou fazer em uma aldeia, perto do rio Papagaio quando, chefiando um grupo armado, foi atacar os pacíficos Parecis. E o que lhe aconteceu? Embora com superioridade de armas, após tenaz luta, foi ele rechaçado, com várias perdas.

Foram dias penosos, no prosseguimento da marcha. Na travessia da extensa mata, encontramos vasto brejo, onde perdemos um dia de trabalho para vencê-lo. Pelo caminho, íamos apanhando, aqui e ali, algumas frutas. Já por esse tempo, poucas havia, porém. A que mais achávamos era uma espécie pequena de marmelo, que tinha o nome de marmelada de cachorro, quase sempre verde. Enchíamos os bolsos para, no pouso, assá-las na brasa. Sempre era alguma cousa que se tinha para mastigar.

Quando atravessávamos a mata, nosso índio realizou uma caçada pitoresca: uma arara azul, um filhote de seriema e uma coruja. Tudo metido na única panela, o cozinheiro pretendeu fazer uma sopa. Os que do “petisco” se serviram, disseram que a coruja e o filhote de seriema desmancharam-se no cozimento, mas a arara pouco cozinhou.

Dois dias antes de alcançarmos o rio Papagaio, numa bela várzea, demos com um bosque de palmeiras baixas, da espécie guariroba. Deu-nos o jantar do dia. Sessenta foram cortadas e postas a cozinhar, mas sem gordura nem sal. Enfim, nessa noite dormimos com a fome diminuída. Não é preciso dizer que o bosque dessa generosa palmeira, quando de nossa saída do local, havia desaparecido. Cada qual levou o que pôde.

Não tornamos a ver os Nhambiquaras. Sabíamos, porém, que nos seguiam. Pelo interior do cerrado, observavam todos os nossos movimentos. Várias vezes, notamos nos cães atitudes de apreensão, como suspeita de algum perigo; quando em marcha, as orelhas em pé e olhando em volta, como pressentindo algo que lhes inspirava vago receio.

Atravessando o rio Papagaio que, no dizer do Amure, era a linha divisória entre as terras ocupadas pelas duas tribos, nada mais teríamos a temer, por parte daqueles atrevidos silvícolas. Afinal, a razão estava com eles. Sem pedir-lhes a devida licença, invadimos-lhes a casa e, à moda deles, fomos enxotados e empurrados, até a porta da rua e, daí para fora, com o tradicional pontapé.

Tudo isso desapareceria, após a travessia desse rio. Confiantes estávamos em que não deveríamos preocupar-nos mais com qualquer perseguição.

Chegamos, finalmente, ao rio Papagaio. Como vínhamos fazendo, à chegada desses rios, ficávamos sentados no barranco, olhando para a margem oposta, como a calcular quão difícil seria lá chegarmos.

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TRAVESSIA DO RIO PAPAGAIO (SAUCRU-INÁ) NO DIA 05/11/1907

(DE VOLTA DA TERRA DOS NHAMBIQUARAS, PARA A DOS PARECIS)

Depois de todas essas dificuldades, extenuados, estropiados, maltrapilhos e famintos, no dia 5 de novembro, chegamos ao rio Saucru-iná (rio Papagaio).

Afinal, chegamos! Nossos soldados puderam, logo, preparar uma boa fogueira, que permitiu armarmos o acampamento, passando, todavia, a noite, nas mesmas condições da anterior. A regra, em viagem, é de atravessar o rio, fazendo-se o pouso do outro lado, em face de uma possível chuva, que impedisse a travessia no dia seguinte. Nessa ocasião, foi-nos impossível seguir essa regra, em virtude do adiantado da hora e do estado deplorável do pessoal.

Nesse dia, uma dúzia de palmitos, sobra ainda do festim de dias passados, acima descrito, mais algumas frutas, maduras ou não, sãs ou bichadas, foi o jantar. Havia fome e cansaço, mas ninguém disse o que sentia, em respeito ao raro valor do nosso Chefe, o Major Rondon, esse grande condutor de homens.

Felizmente, não havendo chovido, tudo saiu bem, podendo, logo na manhã seguinte, após ser distribuída a escassa refeição a que estávamos reduzidos, atravessar o rio, contentes, já esperançosos de dias melhores.

Na vinda, havíamos deixado ali uma canoa, desaparecida nessa ocasião, embora a tivéssemos escondido entre a vegetação ribeirinha. Os índios teriam-na descoberto, levando-a dali. Mas, quem pode esconder alguma cousa no mato, que não seja descoberta por esses índios? Para onde levariam os Nhambiquaras essas e outras canoas não mais encontradas em nossa marcha de volta? Teriam-nas arrastado, escondendo-as no mato, ou teriam-nas solto rio abaixo? Era preciso passar para a outra margem do rio. Difícil, mas necessário e não impossível.

Meditávamos. Havia, entre nós, meia dúzia de homens ainda suficientemente fortes para essa empresa. No entanto, o Chefe repetiu duas ou três vezes o apelo ao pessoal:

-Companheiros, o tempo não espera! Precisamos passar para a outra margem! Mãos à obra! Já passa do meio dia! Vamos adiante!

Nos 3 ou 4 cargueiros que nos restavam, não havíamos deixado perder os couros de bois, que em viagem servem para cobrir a carga, preservando-a das chuvas. Esse couro serve também para fazer o que se chamava de “pelotas” que, numa emergência, substituíam a canoa, para a travessia da bagagem e dos homens que não sabem nadar.

A “pelota”, único instrumento de que poderíamos nos valer nessa emergência, em pouco estava construída. O restante de nossas bagagens devia ser atravessada com bastante demora, visto que a pelota não comportava senão poucos volumes de cada vez. Também na pelota deviam passar os enfermos, que na ocasião pareciam mais depauperados que doentes, os arreamentos, as bruacas, as cangalhas etc. Nossos companheiros, de força e ânimo verdadeiramente esgotados, não se ofereciam ao trabalho. Era necessário o exemplo.

O Major entrou na água e, puxando, por uma corda presa aos dentes, a pelota carregada, levou-a à outra margem. Enquanto ia e vinha, os homens válidos preparavam a carga para a viagem seguinte, continuando, assim, até se encontrar tudo na outra margem. Eram seis horas da tarde quando, terminada a travessia, pôde o Major descansar, o que ainda não havia feito desde que iniciara a primeira travessia. Não mostrava sinais de maior fadiga. A isso tudo assistindo, veio-me à mente que o valor de um chefe sempre foi a salvação de uma expedição. Admitindo que em semelhante ocasião tivéssemos um chefe sem qualquer prática das tremendas dificuldades que a cada passo se nos apresentavam nas brenhas, situação semelhante à presente e que, em vez de agir com inteligência e firmeza precisas, consentisse em atender opiniões múltiplas, deixando prevalecer, por exemplo, a idéia de algum teimoso, que dissesse: “Chefe, o rio mais acima parece estar mais estreito!” Outro diria ser mais abaixo e, assim, de idéia em idéia, as mais desconexas e absurdas, cada um sairia à procura do impossível, alguns não voltando, por haver perdido o rumo de seu acampamento, perdendo, portanto, sempre, o contacto com seus companheiros, para nunca mais revê-los, perdidos para sempre. Nos chapadões cobertos de cerrado, é perigoso alguém separar-se de uma comitiva, sem saber bem como o faz, sem tomar o devido cuidado para não se perder. Mais de uma vez comentou-se essa possibilidade no acampamento. Nessa imensa planície, coberta em seu todo de uma vegetação de arbustos iguais, sem um ponto de referência para guiar-se, um homem, que esteja só, se der duas voltas sobre si mesmo, poderá perder o rumo do lugar de onde veio e nunca mais encontrar seus companheiros, que algures o esperam. Isso aconteceu, entretanto, em outra ocasião, em 1909, conforme narro, no final desta obra.

Nessa travessia, perdemos mais dois muares, embora tomássemos precauções, ajudando esse pobres animais, com alguns homens puxando e outros empurrando. Não conseguiam atravessar, afundando, sem possibilidade de salvamento. Com o coração oprimido, assistíamos ao fim desses míseros quadrúpedes, sem poder alguma cousa fazer para evitar-lhes tão triste fim! Nenhum dos tropeiros jamais havia visto cousa semelhante, nem ouvira dizer que burro ou boi pudesse chegar a tal ponto de fraqueza.

Essa travessia tomou-nos boa parte do dia. Porém, o receio de perseguição pelos índios já não nos atormentava mais. Aproveitamos, mesmo, essa parada, para a realização de nossa festinha, que não fôra possível ter lugar à margem do Juruena. O receio de ataque por parte dos Nhambiquaras já era para nós coisa do passado.

O Major proferiu um pequeno, mas tocante discurso, agradecendo a todos, pelo modo como cada um se portou, por ocasião da emboscada e conseqüente ataque que sofremos dos índios e agradecendo à Proteção Divina, permitindo que nenhum de nós saísse ferido.

Já tranqüilizados e em zona segura, tratamos de nos preparar para a marcha de regresso e procurar fazê-lo sem perda de tempo, em virtude de nossa situação precária. Houve melhora no rancho, com sopa de comprimidos americanos. A lata de açúcar, há tempo guardada para uma possível grande necessidade, apareceu em boa ocasião, permitindo-nos a sobremesa do mate.

Grande, porém, foi o sacrifício que suportamos. Estropiamento de mais alguns doentes, perda de outros animais por aniquilamento completo em caminhadas, mesmo sem carga.

Continuávamos convencidos de ser o capim das queimadas o responsável que, por uma razão desconhecida, ou intoxicava o pobre muar ou, por ser demasiado áspero e duro, não o podiam mastigar nossos animais de sela e de carga, dos quais naqueles dias já muito poucos nos restavam. As bruacas estavam com o peso reduzidíssimo, contendo apenas o estritamente necessário, como os instrumentos de engenharia e fotográficos. De cozinha, apenas conservávamos uma panela, obrigados que fomos a abandonar os demais utensílios, mesmo porque estávamos desprovidos de cereais. A caça era rara, parecendo não existir nesses intermináveis chapadões. Nem mesmo urubus eram vistos no ar. Nossos animais, que na ida haviam tombado mortos, eram encontrados na volta sem vestígios de terem sido comidos por aves nem animais carnívoros. Estavam secos. A explicação para esse despovoamento é o seguinte: nos grandes divisores de águas, a caça é rara e nos rios não há ou quase não há peixe. Em nossas andanças pelo sertão, enquanto nos encontrávamos em divisores de águas, nunca conseguimos peixes naqueles rios. Em certa ocasião, insistindo com o Amure para pescar na margem de um rio, onde fazíamos pouso, conservei-me junto a ele até as dez horas da noite, inutilmente. As águas naquelas regiões são límpidas e transparentes até o fundo, onde se pode ver qualquer pequena pedra ou o que quer que esteja no fundo. Seria essa a razão de não conseguirmos peixe?

A passagem do rio Saucru-iná (Papagaio), como expliquei acima, foi trabalhosa e cansativa. Todos já, felizmente, na outra margem, encontravam-se contentes, livres da preocupação que os havia acompanhado, o saber, nesses últimos dias, estarmos sob a constante vigilância dos Nhambiquaras, entretanto, extenuados, porém, tudo feito em perfeita ordem. A pelota fora suficiente para a travessia de toda a carga e dos homens que não sabiam nadar. O Amure, ciente de que o farmacêutico Benedito Canavarros não sabia nadar, fê-lo aceitar o costume dos índios, de como procedem em suas viagens, para ajudar mulheres e crianças a atravessar grandes rios. O sistema consiste em puxar a pessoa, ambos segurando em um pedaço de pau, o da frente nadando só com um braço e arrastando o manso companheiro que, assim, desliza suavemente, sem qualquer perigo, até a margem oposta. Canavarros, a princípio, demonstrou certo receio de confiar-se a semelhante prova, mas, logo, tomando confiança, submeteu-se ao sistema, com bom resultado.

Para além desse rio, os lugares eram nossos conhecidos. Sabíamos que, a uma meia dúzia de léguas, existiria algum recurso, representado pela vizinhança de aldeias Parecis. Nesse mesmo dia, de lá nos vieram alguns. O Amure havia sido despachado à procura, nas malocas, de alguma cousa para nossa cozinha, fosse o que fosse, tudo serviria, no estado de franco depauperamento em que todos nos encontrávamos. Embora decerto insuficiente, seria recebido com o agrado que merecia. Amure voltou à noite, trazendo algumas raízes de mandioca, três ovos, um sapicuá de polvilho e uma metade de tatu bola, que daria a gordura necessária para prover o nosso jantar, de alguma forma do gosto diferente do tempero de costume. Tudo custou vinte mil réis, reclamados pelo índio e que o Major pagou com o prazer de quem, numa loja de uma cidade, encontrou um artigo precioso, por ínfimo preço. O Amure, ao chegar, mostrava visíveis sinais de estar embriagado. Havia, de certo, festejado a volta, abusando de sua bebida predileta, a “chicha”. Logo ao chegar, iniciou uma série de reclamações contra o Major, acusando-o pelos trabalhos excessivos e pelas canseiras sofridas, sem qualquer proveito, sem ter ganho cousa alguma, dizendo, tomado de curiosa indignação:

-Denêro! Denêro! Ocê não dá denêro para Pareci! Coitado, Pareci não ganha nada! Ocê, seringueiro ladrão, mêmo! Ocê não pagá Pareci, ladrão mêmo! Coitado de Pareci!

Tudo, apenas efeito da “chicha”, que havia absorvido em grande quantidade.

No dia seguinte, já tudo esquecido, estava ele com melhor disposição, novamente amigo de todos. O Major lhe deu uma cédula de duzentos mil réis, mais alguns miúdos há muito esquecidos no fundo da mala, uma espingarda, custosa arma de fogo central, de fabricação belga e uma dúzia de ferramentas de lavoura. Desligado de nossa Seção, o precioso guia Amure voltou para sua aldeia, carregado de presentes, abraçado por todos nós, a lhe desejarmos toda sorte de felicidades.

Os quatro cavaleiros, quando do ataque dos Nhambiquaras a Rondon, no dia 22 de outubro de 1907: o Guia Domingos, Major Rondon, Tenente Lyra e o Fotógrafo Leduc
Os quatro cavaleiros, quando do ataque dos Nhambiquaras a Rondon, no dia 22 de outubro de 1907: o Guia Domingos, Major Rondon, Tenente Lyra e o Fotógrafo Leduc

 
 
 

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