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Quando Cáceres Esteve na Mira de um Império Europeu


Fazenda Descalvados - imagem Túllio F
Fazenda Descalvados - imagem Túllio F

No coração do Pantanal mato-grossense, às margens do rio Paraguai, repousam as silenciosas ruínas da Fazenda Descalvados. Restos enferrujados de máquinas e paredes corroídas pelo tempo contam uma história pouco conhecida — uma trama que conecta Cáceres a interesses internacionais, estratégias colonizadoras e disputas geopolíticas na virada do século XIX para o XX.

O Rota Cacerense convida você a viajar no tempo para conhecer esse fragmento singular da história, onde um projeto belga quase transformou a fronteira oeste do Brasil na “nova colônia” da Europa em território sul-americano.


De Estância Pecuária a Indústria de Exportação

Fundada em meados do século XIX, a Fazenda Descalvados já se destacava pelo rebanho impressionante — cerca de 200 mil cabeças de gado. Sob o comando do empresário uruguaio Jaime Cibils Buxareo, o local ganhou uma moderna fábrica de processamento de carne e derivados. Ali, entre 20 e 30 mil bois eram abatidos anualmente, gerando extrato de carne, caldos e conservas destinados à exportação, principalmente para a Bélgica.

O segredo do sucesso estava na localização estratégica: o rio Paraguai conectava a produção à Europa por via fluvial e marítima, permitindo que os produtos partissem do coração do Pantanal até os portos belgas.


A Chegada dos Belgas

Em 1895, em uma viagem à Bélgica, Cibils vendeu a fazenda e a fábrica à Compagnie des Produits Cibils, sediada em Antuérpia. A transação envolveu cifras milionárias para a época — mais de 1,2 milhão de réis — e marcou o início de uma fase surpreendente: o controle do empreendimento por capitalistas belgas.

Logo após a compra, chegaram a Descalvados administradores liderados por François Joseph Van Dionant, que assumiu não apenas a gestão industrial, mas também funções diplomáticas. Nesse mesmo ano, a Bélgica solicitou ao governo brasileiro a instalação de um consulado em Descalvados — pedido negado, mas substituído pela autorização de um vice-consulado, com Van Dionant como vice-cônsul.


Um Projeto Maior: Colonizar o Oeste Brasileiro


Ruínas de uma fábrica com equipamentos enferrujados e de origem belga Foto: Rodinei Crescêncio
Ruínas de uma fábrica com equipamentos enferrujados e de origem belga Foto: Rodinei Crescêncio

Segundo o historiador Domingos Sávio Garcia, professor da Universidade do Estado de Mato Grosso, a aquisição de Descalvados não era um simples investimento agroindustrial. Tratava-se da ponta de lança de um plano maior: estabelecer uma presença belga permanente na fronteira oeste, numa região de fraca presença do Estado brasileiro.

Entre 1895 e 1903, empresas belgas adquiriram de 5 a 8 milhões de hectares — cerca de 80 mil km² — abrangendo áreas dos atuais estados de Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Rondônia. Além da pecuária, exploravam borracha e outros recursos, sempre com vistas a um domínio econômico que, em caso de instabilidade política, poderia se transformar em controle territorial.

Os belgas chegaram a trazer militares que haviam atuado no Congo, então colônia da Bélgica, para proteger suas propriedades. Fontes apontam que esse aparato armado operava contra ladrões de gado, mas a estrutura lembrava um contingente de ocupação.


Entre a Geopolítica e a Questão do Acre

O projeto belga encontrou seu limite na complexa disputa pelo Acre. Na virada do século XX, seringueiros brasileiros, grupos norte-americanos e o governo boliviano disputavam o controle da região rica em borracha. O impasse terminou em 1903, com a incorporação do Acre ao Brasil, resultado da habilidade diplomática do Barão do Rio Branco.

Para Domingos Sávio, a resolução da Questão do Acre — e a firme postura brasileira diante de possíveis intervenções estrangeiras — foi decisiva para frear as ambições belgas. Os Estados Unidos deixaram claro que não admitiriam uma “Amazônia belga”, e o Brasil consolidou sua presença na fronteira oeste, desmobilizando o plano de colonização.


O Declínio e as Ruínas

Após 1912, a Fazenda Descalvados passou ao controle da Brazil Land, Cattle and Packing Company, do empresário norte-americano Percival Farquhar. Crises financeiras e mudanças políticas levaram à paralisação da fábrica em 1940. Em 1952, a propriedade foi adquirida por Luís Antônio Lacerda, e desde então permanece como testemunho silencioso de uma das mais intrigantes tentativas estrangeiras de se instalar no Brasil.

Hoje, quem visita o local encontra máquinas de origem belga tomadas pela ferrugem, galpões vazios e o eco de uma história que poderia ter mudado o mapa do país.


Memória e Patrimônio

A saga dos belgas em Cáceres é mais que um episódio local — é parte de um capítulo global da “Era dos Impérios” (1875-1914), quando potências europeias disputavam territórios e mercados no mundo inteiro. No caso de Descalvados, o fracasso do projeto belga não diminui sua importância histórica: ele revela a vulnerabilidade do Brasil recém-republicano e a importância estratégica da fronteira oeste.

Preservar e divulgar essa história é valorizar o patrimônio cultural de Cáceres e compreender como o Pantanal já esteve no centro de disputas internacionais.


Fontes:

Garcia, Domingos Sávio da Cunha. Território e Negócios na Era dos Impérios: Os Belgas na Fronteira Oeste do Brasil. Fundação Alexandre de Gusmão, 2009.

Arquivo Público de Mato Grosso.

Coordenação de Comunicação Social – UNEMAT.

Acervo histórico de Cáceres.

 
 
 

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